irmeza, mi pueblo! e no mais?
mando aqui um texto do rilke fuderoso nunca publicado em português:
Sobre a Paisagem – Rainer Maria Rilke (trad. Do francês Beto Tibaji)
Sabe-se bem pouco sobre a pintura da antiguidade; mas não é tão arriscado supor que ela representava os homens assim como os pintores de uma época mais recente viram a paisagem. Nas imagens de vasos, naqueles testemunhos inesquecíveis de uma grande arte do desenho, o cenário (casa ou rua) é apenas citado, de certa maneira abreviado, designado por sua inicial ; mas os homens nus são aí absolutamente iguais às arvores que carregam frutos e guirlandas de frutos ou a arbustos que florescem e a primaveras nas quais cantam os pássaros. Naquele tempo, o corpo, que se cultivava assim como uma terra, sobre o qual se suava como para obter dele uma colheita, e que era possuído assim como se possui um bom terreno, era a única beleza que retinha o olhar, a imagem que todas as significações, deuses e animais e todos os sentidos da vida atravessavam alinhados ritmicamente. O homem, embora existisse há milênios, era ainda novo demais para si mesmo. A paisagem era: o caminho no qual ele andava, a pista na qual ele corria, eram todos aqueles estádios e praças de jogos ou de dança onde se realizava o dia grego; eram os vales onde se reuniam as forças armadas, os portos de onde se partia para a aventura e aonde se chegava, mais velho e cheio de lembranças inauditas; os dias de festa e as noites que, enfeitadas com um tilintar prateado, a eles sucediam, as ascensões rumo aos deuses e o movimento em torno do altar – esta era a paisagem na qual se vivia. Mas era desconhecida a montanha em que nenhum deus com rosto de homem morasse; desconhecido o promontório onde não se erguesse nenhuma estátua visível à distância; desconhecidas as encostas que nenhum pastor tivesse explorado, não mereciam que se lhes consagrasse uma única palavra. Eram apenas cenas vazias enquanto o homem não aparecesse, animando este cenário com a ação serena ou trágica de seu corpo. Tudo o esperava, e lá onde ele aparecia, tudo se apagava para lhe dar lugar.
A arte cristã negligenciou estar relação com o corpo, sem por isso se aproximar verdadeiramente da paisagem; homens e coisas eram como caracteres dos quais ela dispunha, formando longas frases, cuidadosamente pintadas com um alfabeto de iniciais. Os homens eram roupas, e somente no inferno eram corpos; a paisagem raramente era a terra. Em quase toda pintura onde a paisagem era agradável ela precisava estar representando o céu e nas que fosse selvagem e inóspita, despertava o terror, era o lugar dos exilados, eternamente perdidos. Começava-se a ver a paisagem; porque os homens haviam se tornado finos e transparentes, mas eles eram feitos de tal modo que deveriam sentir a paisagem como uma duração efêmera, como túmulos enfileirados invadidos pelo verdor, sob os quais estava suspenso o inferno e sobre os quais se abria o grande céu como a verdadeira realidade, profunda e desejada por tudo o que é. Agora que, de repente, havia três lugares, três moradas sobre as quais havia muito a falar: céu, terra e inferno; tornava-se indispensável uma determinação dos lugares, era preciso olha-los e até mesmo representa-los. Nos Mestres primitivos italianos, esta representação, ultrapassando o próprio objeto, atingiu uma grande perfeição, basta lembrar as pinturas de Campo Santo em Pisa para sentir que a concepção da paisagem já havia atingido uma certa autonomia. Certamente acreditava-se designar um lugar e nada mais, mas isso era feito com tal calor e com um tal abandono, falava-se com uma eloqüência tão atraente e com tanto amor às coisas que eram ligadas à terra, a esta terra suspeita e renegada pelos homens, que esta pintura hoje nos aparece como um hino a esta terra, entoado pelos santos. E todas as coisas que se via eram novas, de modo que esta contemplação era acompanhada por um espanto perpetuo, por uma alegria provocada por inúmeras descobertas. E consequentemente, ao mesmo tempo que a terra, celebrava-se o céu que se aprendia a conhecer porque se tinha saudades de seu conhecimento. Porque a piedade profunda é como uma chuva: acaba sempre recaindo sobre a terra de onde se elevou e é uma benção para os campos.
Sem querer, tinham sentido o calor, a felicidade e o esplendor que podem irradiar de um prado, de uma vertente florida e de árvores carregadas de frutos que se erguem umas ao lado das outras; de tal modo que quando se pintavam madonas, esta riqueza cercava-as como se fosse um casaco, coroava-as como se fosse uma coroa e a abriam-se paisagens, como bandeiras, em sua honra; porque não se sabia preparar-lhes nenhuma festa mais animada, não se conhecia nenhum dom que igualasse a este: apresentar-lhes todas as belezas que acabavam de ser descobertas e fundi-las com a madonas. Não se designava mais nenhum lugar específico, nem o céu: entoava-se a paisagem como um hino a Maria, que explodia em cores vivas e claras.
Mas, fazendo isso, dera-se um grande passo. Pintava-se a paisagem sem se pensar precisamente nela, tendo em vista sobretudo a si mesmo; ela tornara-se pretexto para a expressão de um sentimento humano, a parábola de uma alegria, de uma simplicidade e de uma piedade humanas. Tornara-se arte. E Leonardo já a concebera assim. As paisagens em seus quadros são imagens da sua experiência e de seu saber os mais secretos, espelhos azuis onde leis misteriosas contemplam-se pensativamente, fundos grandes como futuros e enigmas não resolvidos. Não é por acaso que Leonardo, que começou a pintar homens como experiências, como destinos que ele havia atravessado solitariamente, sentiu também a paisagem como meio de expressão de uma experiência, de uma profundidade e de uma tristeza quase indizíveis. A este homem que antecipava tantas conquistas ainda irrealizáveis foi dado usar todas as artes com uma infinita grandeza; ele falava através delas como em línguas múltiplas, de sua vida e de progressos e profundidades de sua vida. Ninguém pintou ainda uma paisagem que seja tão completamente paisagem e que seja, no entanto, confissão e voz pessoal como esta profundidade que se abre atrás da Mona Lisa. Como se tudo que é humano estivesse contido na sua imagem infinitamente silenciosa e como se todo o resto, tudo que está diante do homem e tudo que o ultrapassa, estivesse contido nesta relação misteriosa de montanhas, arvores, pontes, céus e água. Esta paisagem não é a imagem de uma impressão, não é a opinião de um homem sobre coisas imóveis; ela é natureza em devir, mundo em gestação, tão estrangeira ao homem quanto uma floresta desconhecida numa ilha deserta. E era preciso olhar a paisagem como uma coisa longínqua e estrangeira, como uma coisa perdida e sem amor, que se realiza por inteira em si mesma, para que, um dia, ela pudesse servir de meio e de ponto de partida para uma arte autônoma. Era preciso que ela fosse distante e muito diferente de nós para que pudesse tornar-se uma parábola libertadora para o nosso destino. Era preciso que na sua indiferença sublime se mostrasse quase hostil para poder oferecer à nossa existência uma nova interpretação graças a seus objetos. Foi com este espírito que tomou forma esta arte da paisagem da qual Leonardo da Vinci já tivera o pressentimento e o domínio. Ela se desenvolveu lentamente, entre as mãos de solitários, de século em século. Longa era a estrada que precisava ser trilhada porque era difícil se desacostumar do mundo de maneira tão completa que fosse permitido vê-lo sem o olho prevenido do indígena que relaciona tudo com ele mesmo e com suas necessidades quando olha. Sabemos quão mal vemos as coisas no meio das quais vivemos; geralmente é preciso que alguém venha para nos dizer o que nos cerca; foi necessário então começar por afastar as coisas de si para tornar-se capaz, em seguida, de aproximar-se delas de modo mais imparcial e mais sereno, com menos familiaridade e com um recuo respeitador, porque só no instante se começava a compreendê-la; quando sentia-se que ela era outra coisa, esta realidade que não toma parte, que não tem sentidos para nos perceber, só então se saía dela, solitário, fora de um mundo deserto.
E isso era preciso para que o artista se tornasse artista por ela; não se devia mais senti-la enquanto sujeito, na significação que ela tinha para nós, mas como objeto, como uma grande realidade que estava aí.
Foi assim que se experimentou o homem no tempo em que pintavam-no grande; mas o homem se tornou oscilante e incerto e sua imagem tornava-se fluida, quase inapreensível. A natureza era mais durável e maior; todos os movimentos nela eram mais largos, todo repouso mais simples e cercado de solidão. Havia no homem uma saudade de falar de si através destes meios sublimes, como de uma realidade não menos forte, e foi assim que nasceram as paisagens onde nada acontece. Mares desertos foram pintados, casas brancas em dias chuvoso, estrada nas quais ninguém caminha e extensões de água de uma indizível solidão. O pathos se dissipava cada vez mais, e quanto mais se dominava esta língua, mais simplesmente ela era utilizada. Afundava-se na grande calma das coisas, sentia-se sua existência tomar a forma de leis, sem espera e sem impaciência. E os animais iam e vinham por entre elas, calmos, suportando como elas o dia e a noite, obedecendo às mesmas leis. E quando o homem, mais tarde, entrou nesse ambiente, como pastor, camponês, ou simplesmente figura no fundo do quadro, ele havia perdido toda presunção e via-se que ele não queria ser nada além de uma coisa.
Este desenvolvimento da arte da paisagem, esta lenta transformação do mundo em paisagem corresponde a uma longa evolução do homem. O conteúdo destas imagens, que emanava, de modo absolutamente involuntário, da contemplação e do trabalho, nos ensina que um futuro começou no coração de nosso tempo; que o homem não é mais o ser sociável que se move em equilíbrio por entre seus semelhantes, nem aquele em torno do qual gravitam a noite e a manhã, o próximo e o distante. Que ele está entre as coisas como uma coisa, infinitamente só, e que toda comunhão de coisas e homens se retirou para a profundidade comum onde se nutrem as raízes de tudo o que cresce.