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o tempo de uma gaveta aberta
é o tempo de uso de uma gaveta aberta
é o tempo de uma gaveta em uso
agora fechada a gaveta guarda
o tempo para trás levou
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segunda-feira, 29 de junho de 2009

Alarme transparente Luiz Guilherme Barbosa*

Quando lemos o primeiro livro de um poeta desejamos sempre localizar sua diferença, em busca de um esboço da singularidade da obra que começa. Os livros seguintes experimentarão novas formas, novos tons – matizes, mas podemos começar a reconhecer no primeiro livro aquele estilo, modo único de esbarrar nas palavras, do qual o poeta não terá como abdicar. Fernando Rodrigues, em seu “livro (precário)”, imprime, já no título, a metamorfose de seu próprio nome como quem buscasse, pela poesia, corrigir a nomeação de si: Fordismo de um só, título isométrico e isorrítmico ao nome do poeta, com a semelhança das respectivas primeiras sílabas, ainda traz, colada à capa de cada exemplar concebida por Ícaro Lira, uma fita adesiva vermelha e transparente atravessando verticalmente o mapa da zona sul carioca. Por essa fita, sua poesia apresenta-se como uma espécie de gesto para a transparência do alarme para o qual o verso “uma sirene que grita de dor” é emblemático. A articulação das epígrafes de Deleuze & Guattari e Caetano Veloso anuncia poemas sob o signo dos insetos, o que implica a inserção da obra numa poesia que propõe o poético pela reversão: em lugar da vocalização melodiosa e metafórica dos pássaros, são as fricções sonoras dos insetos que imprimem uma tatilidade à voz capaz de evidenciá-la por si mesma. A disposição dos títulos dos poemas, registrados na parte inferior das páginas, somada a uma tendência à contenção na distribuição de versos por estrofe, valoriza a visualização das palavras, contribuindo para uma maior plasticidade da leitura. As fricções dos insetos, nos poemas de Fernando Rodrigues, ocorrem incessantemente pela mescla de diferentes níveis de linguagem, não sem humor. Há, por um lado, uma babelização da linguagem, que tanto reflete línguas, livros e canções (inglês, espanhol, latim, francês) quanto experiências linguísticas do cotidiano da cidade, como no título de poema “Gógol no google”. Estruturas próprias da fala são bastante recorrentes, tanto construções sintáticas quanto interjeições. Somem-se a isto as sequências sonoras de caráter cômico – ou melhor, as tiradas vococômicas –, as colagens de versos e de slogans, as rimas, neologismos e o mecanismo palavra-puxa-palavra que conhecemos de outra poesia. As melhores passagens desta poesia são aquelas que buscam a simultaneidade deste universo de referências: “fiat punto / você no controle // êpa // punctum” ou “mas agora pensolto / olharalém que se encaminha prum fade-out” ou “veja na enciclopédia livre / den fria encyclopedin // livre, fria: sugestivo, não? // não?”. Estes e outros versos parecem insistir num nivelamento discursivo entre palavras, neologismos, referências, línguas, tons que retira seu humor justamente da diferença de origem dos discursos. Fordismo de um só (ou Fernando Rodrigues) constrói-se como passagem dos fragmentos na linha de montagem composta por única etapa que, por isso, só pode construir objetos inacabados. O ótimo prefácio de Lucas Parente já o reconhece: “E tudo isso citação: apontamentos – mistura de atos (apontar e anotar ao mesmo tempo)”. O poema “Ventilador toma partido de ‘Mundo mundo vasto mundo’” termina com os versos “cê pega o que já existe / (pois tudo já existe) // cê pega isso tudo e movimenta / sabe? assim quero meu poema”. A coesão deste “isso tudo”, aquela mescla discursiva, é dada pelo tom enunciativo da fala. É ele que permite a sustentação de versos tão vazios semanticamente como “tá bom / taco água na goela // o quê? // nada, não”. A beleza da precariedade de certas passagens como esta, além de apontar para o sentido exclusivamente contextual de tais versos, reside na relação que esta poesia estabelece com o acaso. O poema liminar de Mallarmé (Un coup de dés jamais n’abolira le hasard) representaria uma questão resolvida em versos para este Fernando que “nunca deu certo como poeta concreto”, segundo a nota biográfica presente no livro. No poema em prosa “Mercado negro”, lemos: “não tomo partido do acaso – todo livro o prova. não tomo as rédeas – meu cavalo voa. se não há trajeto, não interpreto. memória: função inútil.” De fato, a função das referências presentes no livro não se confunde com aquela função própria da memória – a lembrança. Do pássaro ao inseto, são as associações da memória que interessam como modo de, movimentando “isso tudo”, nivelar discursivamente passado e presente, referência e neologia. Tomar partido do acaso já é, de algum modo, perder-se na ilusão de controlá-lo. Talvez possamos pensar que esta fixação da voz poética pela fala como modo de lidar com a contingência do poema e como modo de articular a mescla dos registros discursivos situa Fernando Rodrigues numa sutil confluência entre aquela poesia dos elementos cotidianos do nosso Modernismo, os poemas performáticos de Waly Salomão (presença na dedicatória e em pelo menos um dos poemas) e a absorção da memória cultural pelo poema própria da obra de Haroldo de Campos (que aparece pelo menos em uma das epígrafes). Os poemas de Fernando Rodrigues nunca perdem a consciência do artifício: “simulacro do aleatório”, desejam abarcar tudo no esquecimento do que tudo seja. Por isso seu alarme é transparente, em vez de absoluto e estridente – poesia, alarme de si própria, pois tudo que “sopra na janela, vem de volta / composto de acaso emaranhado / cujo intervalo é branco nada”.

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