> Facilmente aceitamos a realidade,
>
> talvez por intuirmos que nada é real.
>
> Sonhei a dúvida e a certeza.
>
> (Jorge Luis Borges)
>
>
>
> - discurso crítico em relação à palavra como representação da realidade
>
>
>
> Ein traum
>
>
>
> Os três sabiam disso.
>
> Ela era a companheira de Kafka.
>
> Kafka a sonhara.
>
> Os três sabiam disso.
>
> Ele era o amigo de Kafka.
>
> Kafka o sonhara.
>
> Os três sabiam disso.
>
> A mulher disse ao amigo:
>
> Quero que esta noite me queiras.
>
> Os três sabiam disso.
>
> O homem lhe respondeu: Se pecarmos,
>
> Kafka deixará de sonhar-nos.
>
> Alguém soube disso.
>
> Não havia mais ninguém na terra.
>
> Kafka disse a si mesmo:
>
> Agora que os dois partiram, fiquei sozinho.
>
> Deixarei de sonhar-me”
>
>
>
> (Borges, 2000c:170).
>
>
>
> Lo sabían los tres.
> Ella era la compañera de Kafka.
> Kafka la había soñado.
> Lo sabían los tres.
> El era el amigo de Kafka.
> Kafka lo había soñado.
> Lo sabían los tres.
> La mujer le dijo al amigo:
> Quiero que esta noche me quieras.
> Lo sabían los tres.
> El hombre le contestó: Si pecamos,
> Kafka dejará de soñarnos.
> Uno lo supo.
> No había nadie más en la tierra.
> Kafka dijo:
> Ahora que se fueron los dos he quedado solo.
> Dejaré de soñarme.
>
>
>
>
>
> MONTEVIDÉU - O corpo do escritor uruguaio Mario Benedetti está sendo velado
> na sede do Congresso em Montevidéu, a capital do país. segunda-feira, 18 de
> maio de 2009
>
> * *
>
> * *
>
> *O ÂNUS SOLAR*
> Georges Bataille
>
>
> Claro está que o mundo é paródia pura, quer dizer, que toda coisa vista
> é paródia de outra, ou a mesma coisa mas com uma forma que decepciona.
>
> Desde que as frases *circulam* nos cérebros ocupados em refletir , o
> mundo chegou à identificação total, pois uma *cópula* ajuda cada frase a
> religar as coisas entre si; e estaria tudo visivelmente ligado se um só
> olhar bastasse à descoberta do traçado inteiro que um fio de Ariadne deixou
> e conduz no seu próprio labirinto o pensamento.
>
> Mas a cópula dos termos não irrita menos que a dos corpos. E quando a
> mim mesmo exclamo: SOU O SOL, disto resulta uma ereção integral porque o
> verbo ser é veículo do frenesi amoroso.
>
>
> Todos têm consciência de que a vida é paródica e uma interpretação lhe
> falta.
>
> Por isso o chumbo é a paródia do ouro.
>
> O ar é a paródia da água.
>
> O cérebro é a paródia do equador.
>
> O coito é a paródia do crime.
>
> O ouro, a água, o equador ou o crime podem ser enunciados
> indiferentemente como o princípio das coisas.
>
> E se a origem não lembra o chão do planeta, que nos parece base, mas o
> movimento circular que ao redor de um centro móvel o planeta faz, um carro,
> um relógio ou a máquina de costura podem de igual forma ser aceitos na
> função de princípio gerador.
>
>
> Os dois movimentos principais são o rotativo e o sexual, de combinação
> expressa numa locomotiva de pistões e rodas.
>
> Dois movimentos que se transformam um no outro, reciprocamente.
>
> Assim notamos que a terra a dar voltas faz animais e homens transarem
> (e, como aquilo que resulta também é a causa que o provoca), animais e
> homens transam fazem a terra dar voltas.
>
> A combinação ou transformação mecânica destes movimentos foi a busca
> dos
> alquimistas a que chamaram pedra filosofal.
>
> E usar uma tal combinação de valor mágico, determinou a presente
> situação do homem no meio dos outros elementos.
>
>
> Um sapato abandonado, um dente estragado, um nariz curto demais, o
> cozinheiro que cospe na comida dos patrões, estão para o amor como a
> bandeira está para a nacionalidade.
>
> Um guarda-chuva, uma sexagenária, um seminarista, o cheiro de ovos
> podres, os olhos cegos de um juiz, são raízes por onde o amor se alimenta.
>
> Um cão que devora um estômago de pato, uma mulher bêbada que vomita, um
> guarda-livros que soluça, um frasco de mostarda, representam a confusão que
> veicula o amor.
>
>
> Um homem é provocado no meio de outros, ao saber por que não é nenhum
> dos outros.
>
> Deitado no leito, ao pé de uma mulher que ele ama, esquece que não sabe
> a razão por que é ele mesmo, em vez do corpo em que toca.
>
> Sofre, sem saber, com a escuridão da inteligência que o impede de
> gritar
> que ele mesmo é a mulher já esquecida da presença dele mas excitada no
> aperto dos seus braços.
>
> O amor ou uma raiva de menino, a vaidade de uma velha da província, a
> pornografia clerical, o enorme diamante da cantora , fazem extraviar-se
> personagens esquecidas em casas cheias de pó.
>
> Bem podem procurar-se avidamente umas às outras: só paródicas imagens
> conseguem lá ver, tão vazias como espelhos.
>
>
> Esta mulher inerte e ausente, pendurada nos meus braços sem sonhar, não
> me é mais estranha do que a porta ou a janela por onde vejo e passo.
>
> Quando adormeço, incapaz de amar aquilo que acontece, recupero a
> indiferença (que lhe permite deixar-me).
>
> Nos meus braços é impossível que ela saiba quem encontra, pois fabrica,
> obstinada, um esquecimento total.
>
> Os sistemas planetários a rodar no espaço, como discos cujo centro se
> desloca a toda velocidade para descrever um círculo infinitamente maior,
> afastam-se da posição que tinham para regressar a ela quando a rotação
> acaba.
>
> O movimento é figura do amor, incapaz de estacionar neste ou naquele
> ser
> para passar, com rapidez, de um ser a outro.
>
> E o esquecimento que vai condicioná-lo não é mais que subterfúgio da
> memória.
>
> O homem, como um espectro, é ligeiro ao levantar-se de um caixão, e da
> mesma forma ele cai.
>
> Horas mais tarde levanta-se outra vez e cai, e sempre assim, dia após
> dia: grande coito com a atmosfera do céu que a rotação da terra, perante o
> sol, dirige.
>
> E apesar da vida terrestre ritmar o seu movimento nessa rotação, por
> imagem não tem a terra que roda mas o membro que penetra a fêmea e dela sai
> quase por completo, para voltar a entrar.
>
>
> Amor e vida só parecem individuais na terra, pois lá se destrói tudo
> com
> vibrações de amplitude e duração diferentes.
>
> Apesar disto, não há vibração que não vá se conjugar em movimento
> circular contínuo; como a locomotiva que anda à superfície da terra, imagem
> da metamorfose contínua.
>
>
> Os seres só morrem para voltarem a nascer, como os falos que saem dos
> corpos para entrarem outra vez dentro deles.
>
> As plantas crescem em direção ao sol, e sucumbem depois em direção à
> terra.
>
> As árvores espetam o solo terrestre com uma quantidade enorme de
> membros
> florescidos que se empertigam em direção ao sol.
>
> As árvores que tão fortemente se levantam, acabam por se queimar com o
> raio, ou ser abatidas, ou ficarem de raiz ao sol. Regressadas ao chão,
> voltam a se erguer como antes e com outra forma.
>
> Coito polimorfo que no entanto está ligado à uniforme rotação da terra.
>
> A mais simples imagem de vida orgânica ligada à rotação, está nas
> marés.
>
> Do movimento do mar, coito uniforme da terra com a lua, procede o coito
> polimorfo e orgânico da terra com o sol.
>
> A primeira forma do amor solar é nuvem levantada acima do elemento
> líquido.
>
> Ás vezes a nuvem erótica faz-se tempestade e cai de novo na terra,
> transformada em chuva, enquanto o raio rompe as camadas do ar.
>
> Pouco depois a chuva torna a levantar-se sob a forma de uma planta
> imóvel.
>
>
> A vida animal descende toda do movimento dos mares, e, dentro dos
> corpos, a vida continua a sair da água salgada.
>
> Assim foi que o mar interpretou um papel de órgão-fêmea, líquido pela
> excitação do macho.
>
> O mar continuamente se masturba.
>
> Os elementos sólidos contidos e agitados dentro de uma água que se
> anima
> de movimento erótico, brotam sob a forma de peixes voadores.
>
>
> A ereção e o sol escandalizam tanto como o cadáver e a escuridão dos
> antros.
>
> Os vegetais crescem uniformemente para o sol e os seres humanos,
> falóides que são como as árvores, nisto contrários aos outros animais, têm
> por força que desviar os olhos.
>
> Os olhos humanos não suportam o sol, nem o coito, nem o cadáver, nem o
> escuro, embora o façam com reações diferentes.
>
>
> Se o meu rosto se injeta de sangue, fica vermelho e obsceno.
>
> Com reflexos mórbidos denuncia ao mesmo tempo a ereção sangrenta e uma
> exigente sede de impudor e orgia criminal.
>
> Por isto afirmo sem medo que o meu rosto é escândalo e só o JESÚVIO*
> exprime as paixões que tenho.
>
> O globo terrestre está coberto de vulcões que lhe servem de ânus.
>
> E ainda que este globo nada coma, às vezes deita fora o conteúdo das
> entranhas.
>
> Conteúdo que salta com estrondo e cai e escorre nas faldas do Jesúvio,
> a
> espalhar morte e terror por todo lado.
>
>
> Na verdade, o movimento erótico do solo não é fecundo, como o das
> águas,
> mas muito mais rápido.
>
> Ás vezes a terra se masturba com frenesi, arruinando por completo a sua
> superfície.
>
> O Jesúvio é pois imagem do movimento erótico, que às idéias do
> espírito,
> através de enorme arrombamento, confere força de escandalosa erupção.
>
>
> Quem acumula esta força eruptiva está necessariamente situado em baixo.
>
> Para os burgueses, os operários comunistas são tão feios e sujos como
> partes sexuais e peludas, ou partes baixas: e cedo ou tarde vai haver uma
> escandalosa erupção, durante a qual vão rolar nobres e assexuadas cabeças
> de
> burguês.
>
> Desastres, revoluções e vulcões não fazem amor com os astros.
>
> As revolucionárias e vulcânicas deflagrações eróticas são antagônicas
> do
> céu.
>
> Como os amores violentos, dão-se à revelia da fecundidade.
>
> A fecundidade celeste opõem-se os desastres terrestres que são imagem
> do
> amor terrestre sem condição, ereção sem saída nem regra, escândalo e
> terror.
>
>
> Assim é que o amor grita na minha garganta: sou o *jesúvio*, paródia
> imunda* *do tórrido e ofuscante sol.
>
> Quero ser estrangulado ao violar a mulher a quem pudesse dizer: “eres a
> noite”.
>
> O sol só ama a Noite e dirige a sua luminosa violência, falo ignóbil,
> para a terra; mas não consegue ainda assim chegar aos olhos e à noite,
> apesar das imensidões terrestres noturnas estarem constantemente se
> dirigindo à imundície do raio solar.
>
> O *anel solar** *é o ânus intacto do seu corpo adolescente, e nada há
> de
> tão ofuscante que se lhe possa comparar; a não ser o Sol, e apesar de ter
> um
> *ânus* que é a *noite*.
>
>
> * Ainda jovem, Bataille inventou esta palavra a partir de *Jesus** *e *
> Vesúvio*, para designar uma espécie de deus-vulcão (Nota do Tradutor).
>
> Tradução de Aníbal Fernandes
>
> Fonte: BATAILLE, Georges. *O Ânus Solar*, Lisboa, Hiena Editora, 1985, pp.
> 19-25.
>
>
>
> Uma oração (*Elogio da Sombra)***
>
> Jorge Luis Borges
>
>
>
>
>
> Minha boca pronunciou e pronunciará, milhares de vezes e nos dois idiomas
> que me são íntimos, o pai-nosso, mas só em parte o entendo. Hoje de manhã,
> dia primeiro de julho de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal,
> não
> herdada. Sei que se trata de uma tarefa que exige uma sinceridade mais que
> humana. É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir. Pedir que
> não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de pessoas que vêem
> e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo do
> tempo
> é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por
> ínfima que seja, é pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir
> que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre. Não posso suplicar que
> meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso
> salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase não
> afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou
> sonhar que dou. Posso dar a coragem, que não tenho; posso dar a esperança,
> que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou
> entrevejo. Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém
> repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia-noite
> a
> árvore que sangra, a Cruz, e pense que pela primeira vez a ouviu de meus
> lábios. O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore.
> Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com
> lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não nos serão
> revelados.
>
>
>
> Quero morrer completamente; quero morrer com este companheiro, meu corpo.
>
>