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o tempo de uma gaveta aberta
é o tempo de uso de uma gaveta aberta
é o tempo de uma gaveta em uso
agora fechada a gaveta guarda
o tempo para trás levou
e não volta mais: voou





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érica zíngano | francine jallageas | ícaro lira | lucas parente

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

“segundo poema todo teu”

entra na casa, esta casa onde, por tantas vezes, entraste sem perceber e, cada vez mais dentro, saías de vez, mas agora não sabes mais como sair – olha bem os móveis, sente o peso das horas que, pela primeira vez se apresentam arreganhadas, feitas de tecido sem graça, soma de farrapos – mas olha bem. não serão mais tuas estas horas, as paredes te dão as costas, as portas de correr emperram, estás sozinho onde tantas vezes disseste a ti mesmo: “estou completamente sozinho”. mas agora que estás, então não dizes nada. percebes o ridículo: falas na segunda pessoa. espera um pouco à porta, não olhes para dentro do quarto pequeno, onde te espera à toa o corpo. o ventilador roda noutra direção, e ali está ela, que espantava as hienas e falava com mil sóis. não te diz respeito o lugar para onde tantas vezes fugiste sem pés de uma realidade seca, infame. adeus ao quadro de Chagall, ao homem flutuante em frente à Torre de Paris, adeus, Neal Cassady, Kerouac, que primeiro te ensinou o abraço e, acima de tudo, adeus aos braços, que se abrem murchos para uma nova vertigem seca, sem pulo. de costas para o muro ficas parado, voltas à porta: não há mais porta, os caminhos se afunilaram em gargantas abertas por navalhas de ferrugem. não serão mais tuas estas horas e, em breve, não serão mais tuas estas lembranças, nem tu serás mais de ti mesmo, pobre órfão fugitivo. ficaram algumas marcas de amor pelo chão, agora ficam aqui lágrimas irreconhecíveis, sabe-se lá de que são feitas, mas escorrem como tudo o mais escorre para fora, adiante. adeus incensos baratos à meia-noite pálida, adeus às cortinas prateadas que escondiam um segredo só nosso, e nem mesmo nosso. adeus cigana de tantos dentes – diga adeus. adeus Elis Regina, pintada por Andy Warhol. adeus mesa feita de um antigo baú, adeus, bares de esquina, cartas invisíveis de amor, viagens não realizadas, concretizadas na cama, até um dia bairro de Laranjeiras, vinho chileno, adeus à toda intensidade da carne crua cansada. “o mais profundo é a pele”, você dizia imitando Paul Valery, mas agora adeus Paul, adeus pele. ela que se encolhe agora na cama, sonhando com tempos talvez mais leves, mas, meu amor, se a vida não foi leve para nós, foi por dádiva, porque somos os que podemos agüentar o peso, somos os beneficiados com o espanto e a cura. principalmente, agora, adeus manta africana, com que ela te recebeu pela primeira vez, jogando em seguida a chave pela janela. aqui está a chave sobre a mesa, e dos dois restou um livro de poemas, um livro médio, um poema só dela, dos que fazem chorar, e a chave do peito, essa que não devolverás, essa que de tanto abrir e fechar fez carne viva do que antes chamavas miséria, mas agora chamas primeiro grito, susto que não se diz, e não falarás mais nada, apenas amarás a ela em preto e branco, como nos filmes antigos. l. marona

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