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terça-feira, 6 de outubro de 2009

4/9/1930

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.

Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto

Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.

Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes –

Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,

Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.

Grandes são os desertos, minha alma!

Grandes são os desertos.

Não tirei bilhete para a vida,

Errei a porta do sentimento,

Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.

Hoje não me resta, em vésperas de viagem,

Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,

Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,

Hoje não me resta (á parte o incómodo de estar assim sentado)

Senão saber isto:

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.

Grande é a vida, e não vale a pena haver vida.

Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar

Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem).

Acendo um cigarro para adiar a viagem,

Para adiar todas as viagens,

Para adiar o universo inteiro.

Volta amanhã, realidade!

Basta por hoje, gentes!

Adia-te presente absoluto!

Mais vale não ter que ser assim.

Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,

E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.

Mas tenho que arrumar a mala,

Tenho por força que arrumar a mala,

A mala.

Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.

Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.

Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,

A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.

Tenho que arrumar a mala de ser.

Tenho que existir a arrumar malas.

A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.

Olho para o lado, verifico que estou a dormir.

Sei só que tenho que arrumar a mala,

E que os desertos são grandes e tudo é deserto,

E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.

Ergo-me de repente todos os Césares.

Vou definitivamente arrumar a mala.

Arre, hei-de arrumá-la e fechá-la;

Hei-de vê-la levar de aqui,

Hei-de existir independentemente dela.

Grandes são os desertos e tudo é deserto,

Salvo erro, naturalmente.

Pobre da alma humana como oásis só no deserto ao lado!

Mais vale arrumar a mala.

Fim.

Fernando Pessoa – Álvaro de Campos, 2002, Poesia, pp. 384-386

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