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o tempo de uma gaveta aberta
é o tempo de uso de uma gaveta aberta
é o tempo de uma gaveta em uso
agora fechada a gaveta guarda
o tempo para trás levou
e não volta mais: voou





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érica zíngano | francine jallageas | ícaro lira | lucas parente

sábado, 4 de setembro de 2010

primeiras linhas à Dominique Cotrezz

Os sapatos grudados nos pés suspensos descem ao chão. O corpo levanta e a cada passo a madeira range. A mãe não acordou, não acaba de acordar. Nunca acorda. A mãe levanta muitas vezes aos dias, às noites. Caminha. Na cozinha o café frio volta ao fogo e do fogo vai à boca. O estômago arde. As pupilas diminuem de tamanho enquanto os olhos crescem. Mais despertos, mais precisos, entre pálpebras que agora se espremem, os olhos avançam em direção ao filete de mata e escuridão que se deixa ver através da fenda que se abriu na tela verde coberta de carcaças de mosquitos enredados sempre pouco antes que atravessassem a minúscula janela. Fazer a ronda se já é noite, dar a volta na casa com as lanternas presas às mãos e ao topo da cabeça envolta por barbantes e elásticos gastos, para em seguida retornar ao quarto, suspender o corpo na cama, olhar o teto, prestar atenção aos ruídos. Hoje não ouve as cigarras: um ou outro galho de árvore despenca, folha, mariposa, morcego, algo cai na laje e ressoa nas paredes do cômodo. A mãe levanta. Caminha. Com sua ajuda, o tronco de árvore deitado detrás da porta de entrada rola para o centro da sala. A mãe abre a porta e ilumina o entorno, a neblina oculta a noite, a folhagem ao longe. A mãe pouco avança, solta as lanternas dentro dos bolsões do colete e recolhe um pássaro ferido antes de pisá-lo. A água que lava o pássaro escorre enferrujada pela banheira. Terra, sangue, o ralo engole o líquido viscoso e amarronzado. As asas, a mãe enlaça com elástico. Contra o sentido da plumagem, arrasta as unhas, todos os dedos, a mão em garra, esfrega a ave, até encontrar a ferida. A mãe mira-lhe os olhos perdidos, ainda vibrantes de dor. Na pequena abertura por onde vaza o sangue da ave, o dedo indicador roça, roça sempre mais firme, até atingir o lado de dentro. Com a ajuda de outro dedo, e de mais outro, logo a mão está inteira enterrada dentro do pássaro. Olha-o nos olhos uma vez mais e já não os vê sofrer. Já não reagem. A mão abre agora o corpo do pássaro, reparte-o em dois.

Os braços pesam até penderem da mesa, balançam a sonolência à altura das coxas, até que a mãe levanta e caminha. Os pratos, as colheres, a panela e as taças, em pilhas, voltam para a cozinha, desarranjam-se dos braços do homem para dentro da pia. No banheiro, todas as roupas se acumulam no chão, o homem despido urina e se larga na banheira enquanto a água cobre-lhe o corpo. Da cabeça recostada o ar sai cada vez mais ritmado, as pernas amolecem primeiro e depois o corpo todo aos poucos escorrega adormecido. Quando o nariz é invadido pela água o homem deixa repentinamente a letargia e o banho. Recupera do chão o mesmo casaco de lã que antes amontoou e ainda molhado cobre com ele os braços, as costas, à altura da virilha. Os vapores do banheiro se dissipam lentamente. Ao meio da sala repousa o tronco de árvore que costuma trancar a porta, o homem agora senta-se sobre ele, à espera da mãe. Quando o sol de meio dia já aquece a casa e a madeira do velho mobiliário estala alternadamente pelos cômodos, a porta de entrada volta a se abrir. Um gato do mato atravessa a soleira enrolado ao pescoço da mãe. As mãos da mãe seguram, cada uma, duas de suas patas. Sempre com o gato envolto no pescoço a mãe caminha. Atravessa a sala, percorre o quarto em torno da cama, caminha impulsionada pelo piso que ressoa aos seus passos, até se deixar levar para a cozinha.