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o tempo de uma gaveta aberta
é o tempo de uso de uma gaveta aberta
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terça-feira, 6 de julho de 2010

coleção de areia

Ítalo Calvino








Há uma pessoa que faz coleção de areia. Viaja pelo mundo, e quando chega a uma praia marinha, às margens de um rio ou de um lago, a um deserto, a uma lande, recolhe um punhado de areia e leva consigo. A seu retorno esperam-na, alinhados em longas prateleiras, centenas de frascos de vidro, entre os quais a fina areia cinza de Balaton, aquela branquíssima do Golfo de Sião e aquela vermelha que o curso do Gâmbia deposita abaixo pelo Senegal, manifestam a sua não vasta gama de cores esfumaçadas e revelam uma uniformidade de superfície lunar, mesmo através das diferenças de granulosidade e consistência; do cascalho branco e negro do Cáspio que parece ainda ensopado de água salgada aos diminutos pedregulhos de Maratea, brancos e negros também esses, à sutil farinha branca salpicada de gotículas violetas de Turtle Bay, próximo a Malindi no Kênia.

Em uma exposição de coleções estranhas, ocorrida recentemente em Paris – coleções de sinos de vacas, de jogos de obstáculos, de tampas de garrafas, de assobios de terracota, de bilhetes ferroviários, de tops, de embalagens de rolos de carta higiênica, de distintivos colaboracionistas de ocupações, de rãs embalsamadas – a vitrine da coleção de areia era a menos chamativa, mas também a mais misteriosa, aquela que parecia possuir mais coisas a dizer, mesmo através do opaco silêncio aprisionado no vidro das ampolas.

Passando em revista esta antologia de areia, os olhos captam primeiro somente as amostras que causam maior admiração. A cor ferrugem de um leito seco de um rio do Marrocos, o branco e negro carbonífero das ilhas Aran ou uma mistura apreciável de vermelho, branco, negro e cinza, que sobre a etiqueta leva o nome ainda mais colorido: Ilha dos Papagaios, México.

Em seguida, as diferenças mínimas entre areia e areia obrigam a uma atenção sempre mais absorta. E assim, pouco a pouco, se adentra em uma outra dimensão, em um mundo que não possui outros horizontes senão essas dunas em miniatura, onde uma praia de pedrinhas rosas nunca é igual a uma outra praia de pedrinhas rosas (misturadas com branco na Sardenha e nas ilhas Granadinas do Caribe e com cinza em Solenzara na Córsega) e uma vastidão de minúsculos cascalhos negros de Porto Antonio na Jamaica não é igual a uma outra das ilhas Lanzarote nas Canárias, nem a uma outra que veio da Argélia, talvez do meio do deserto.
Ali se tem a impressão que esse mostruário de Waste Land universal está para revelar alguma coisa de importante: uma descrição do mundo? Um diário secreto do colecionador? Ou uma atenção sobre mim que estou escrutando nessas clepsidras imóveis que ora alcanço? Tudo isso junto, talvez. Do mundo, a coleção de areias escolhidas registra um resíduo de longas erosões que é ao mesmo tempo a substância última e a negação de seu luxurioso e multiforme arremedo: todos os cenários da vida do colecionador ali aparecem mais vivos do que em uma série de slidesa cores (uma vida – se dirá – de eterno turismo – como em outra parte aparece a vida nos slides, e como a reconstruirão os posteriores, se somente esses relatarem e documentarem o nosso tempo – um cozinhar-se lentamente sobre as praias exóticas alternado com explorações mais árduas em uma inquietude geográfica que traduz uma incerteza, um suspiro), evocados e ao mesmo tempo cancelados no gesto enfim compulsivo de chamar-se a recolher um pouco de areia e encher um saquinho (ou um recipiente de plástico? Ou uma garrafa de Coca-Cola?) e em seguida voltar-se e ir embora.
Eis que como toda coleção também essa é um diário: diário de viagens; certo, mas também diário de sentimentos, de estados da alma, de humores, mesmo que não possamos estar seguros que realmente exista uma correspondência entre a fria areia cor terra de Leningrado, ou a finíssima areia cor areia de Copacabana e os sentimentos que essas evocam quando as vemos aqui, engarrafadas e etiquetadas.
Talvez seja um diário somente dessa obscura mania que constringe tanto a formar uma coleção quanto a possuir um diário, isto é, a necessidade de transformar o transcorrer da própria existência em uma série de objetos salvos da dispersão ou em uma série de linhas escritas, cristalizadas fora do fluxo contínuo dos pensamentos. O fascínio de uma coleção está naquele tanto que revela e naquele outro que esconde os impulsos secretos que lhe direcionaram a criação.

Entre as coleções estranhas da exposição, uma das mais impressionantes era, decerto, aquela de máscaras antigas: uma vitrine da qual olhavam rostos verdes ou cinzentos, de tela ou de borracha, dos cegosolhos redondos e projetados, do nariz de porco em forma de recipienteou em forma de tubos sinuosos. Qual espírito terá guiado o colecionador? Um sentimento – creio – unido de ironia e espanto em direção a uma humanidade que estava bem pronta a se conformar àquelas semelhanças entre animalidade e mecânica; ou talvez também uma confiança nos recursos do antropomorfismo que inventa novas formas à imagem e semelhança do vulto humano para adaptar-se a respirar pelasnarinas o gás mostarda, não sem uma ponta caricatural de contentamento.

É decerto também uma vingança contra a guerra, a fixar naquelas máscaras o aspecto rapidamente obsoleto e, portanto, que aparece agora mais ridículo que terrível; mas também o sentido que naquela crueldade atônita e deformada se reconheça ainda a nossa verdadeira imagem.

Certo, se a coleção de máscaras antigas podia mesmo transmitir um humor de algum modo hilário e corroborante, pouco mais adiante, um efeito agonizante e angustiante era produto de uma coleção do Mickey Mouse. Um tal recolheu provavelmente ao longo de toda a sua vida, bonequinhos, brinquedos, caixas de produtos, capuzes, máscaras, malhas, mobiliário e babadores que reproduzem a estereotipada imagem do ratinho disneyano.

Da vitrine, pendem centenas de orelhas redondas, de brancos focinhos com bolinhas negras, de luvas brancas e negros braços filiformes, os quais concentram em sua euforia condensada a visão de um pesadelo e revelam uma fixação infantil sobre aquela única imagem tranqüilizante em meio a um mundo amedrontador, de tal forma que a sensação de terror finda por tingir de si mesmo aquele único talismã em suas inumeráveis aparições em série.

Mas onde a obssessão de colecionar recai sobre si mesma, revelando o próprio fundo de egotismo, é em uma prateleira plena de desadornadas capas de livro em papelão unidas por fitas, sobre cada uma das quais, uma mão feminina escreveu títulos como: “os homens que me agradam; os homens que não me agradam; as mulheres que admiro; os meus ciúmes; as minhas despesas quotidianas; a minha moda; os meus desenhos infantis; os meus castelos e por fim, os papéis que envolveram as laranjas que chupei”.

O que continham aqueles dossiês, não é um mistério porque não se trata de uma expositora ocasional, mas de uma artista de profissão (Annette Messager, colecionadora, assim assina), que fez de sua série de retalhos de jornal, folhetos de anotações e rabiscos, várias mostras pessoais em Paris e Milão.
Mas aquilo que interessa por ora é próprio essa vastidãode capas fechadas e etiquetadas, assim como o procedimento mental que implicam. A própria autora definiu claramente: “procuro possuir e apropriar-me da vida e dos acontecimentos dos quais venho a conhecer. Por todo o dia eu desfolho, recolho, coloco em ordem, classifico, separo e reduzo tudo na forma de álbuns de coleção. Esses então se transformam na minha própria vida ilustrada”. As próprias jornadas, minuto por minuto, pensamento por pensamento, reduzidos a coleção. A vida triturada em um sutilíssimo emaranhado de grãos, a areia, ainda.

Retorno então sobre os meus passos em direção à vitrine da coleção de areia. O verdadeiro diário secreto a ser decifrado se encontra aqui entre esses niveladores de praias e de desertos envidraçados. Também aqui o colecionador é uma mulher (leio no catálogo da exposição). Mas por ora não me interessa dar-lhe um rosto, uma figura; eu a vejo como uma pessoa abstrata, um eu que poderia ser eu mesmo, um mecanismo mental que procuro imaginar sempre trabalhando.

Eis que ao retornar de uma viagem acrescenta novos frascos aos outros já na fila e, a um dado momento, se apercebe que sem o índigo do mar, o brilho daquela praia de conchas estilhaçadas se perdeu; que do calor úmido dos oásis nada permaneceu na hena retorcida, que distante do México, a areia misturada à lava do vulcão Paricutin é uma poeira negra que parece espalhada abaixo da garganta pelo caminho. Tento então reportar à memória as sensações daquelas praias, aquele odor de floresta, aquela secura, mas é como agitaraquele pó de areia no fundo da garrafa etiquetada. A esse ponto, não me resta nada além de me render; distanciar-me da vitrine, deste cemitério de paisagens reduzidas a desertos; de desertos sobre os quais não sopra mais algum vento.

E mesmo assim, aquela que teve o hábito de reunir e levar adiante por anos essa coleção sabia aquilo que fazia, sabia onde queria chegar. Talvez desejasse distanciar dela o ruídodas sensações deformadas e agressivas, o vento confuso do vivido e encontrar finalmente para si a substância arenosa de todas as coisas, tocar a estrutura silícia da existência. Por isso não dissuade os olhos daquelas areias, penetra com o olhar em uma das ampolas, escava a sua jaula, identificando-se consigo mesmo, extrai as miríades de notícias amontoadasem um punhado de areia.

Cada cinza uma vez decomposto em grãos claros e escuros, reluzentes e opacos, esféricos, poliédricos, achatados, não se vê mais como cinza ou começa somente então a fazer-se compreender o significado do cinza. Assim, decifrando o diário da melancolia do (feliz?) colecionador de areia, cheguei a interrogar-me sobre que coisas estavam escritas naquela areia de palavras escritas que eu coloquei em fila na minha vida; aquela areia que agora me parece tão distante das praias e dos desertos do viver. Talvez observando a areia como areia, as palavras como palavras, poderemos nos aproximar da compreensão e em que medida o mundo triturado e erodido possa ainda encontrar fundamento e modelo.



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* Tradução Marcelo Costa Nunes.